12/03/2011

Os juristas, guardiães da hipocrisia coletiva

Segue abaixo um texto do sociólogo francês Pierre Bourdieu (1930-2002), um dos teóricos mais citados na sociologia brasileira hoje, sobre o papel social das profissões jurídicas e das faculdades de direito. O texto permite um questionamento crítico da (re)produção de conhecimentos nas faculdades de direito. Mas para isso, é preciso conhecer minimamente o modelo teórico do autor. Sugerimos, a quem quiser conhecer melhor a teoria desse autor, a leitura também dos seguintes livros: O Poder Simbólico (principalmente o capítulo "A força do direito") e Razões Práticas (principalmente o capítulo "Espíritos de Estado: gênese e estrutura do campo burocrático").
A tradução do texto abaixo foi feita por Eduardo Emanoel Dall’Agnol de Souza, advogado, graduado em Direito pelo Centro Universitário Curitiba (Unicuritiba). Você fez um bom trabalho, Eduardo!

OS JURISTAS, GUARDIÃES DA HIPOCRISIA COLETIVA[1]
Pierre Bourdieu

Uma das calamidades da ciência social é constituída por todas essas manifestações de pensamento dualista que se traduzem em pares de conceitos antagonistas: interno/externo, puro/impuro, normativo/positivo, axiológico/sociológico, compreensivo/explicativo, Kelsen e Marx, e toda sorte de oposições da mesma espécie. Ao declarar em seguida minhas intenções, direi que meu trabalho, sem que eu tenha planejado fazê-lo, tem como conseqüência, ao meu modo de ver, superar essas oposições. Se tomo a oposição entre Kelsen e Marx, que quase recobre a oposição entre o interno e o externo, é importante saber que se volta a encontrá-la em toda parte, sob formas e com bases sociais semelhantes, no âmbito da sociologia da arte, no âmbito da sociologia da ciência, no âmbito da sociologia da filosofia, no âmbito da sociologia da literatura etc. O que permite traduzir de um espaço a outro suas aquisições.
Creio que deve ser rechaçada também a alternativa do direito como ideologia ou como ciência. Dizer que o direito é uma ideologia é perder de vista a lógica e o efeito específicos do direito. Aclarado isso, dizê-lo também é operar uma ruptura com a representação ingênua, que pretende que o direito seja universal, como ciência ou como norma. Pode-se afirmar, como faz Kelsen, que o direito é um sistema normativo sem se ficar obrigado a dar a ele um fundamento trans-histórico ou trans-social. Dito de outro modo: a oposição que sempre se estabelece entre relativismo (ou historicismo) e absolutismo, ou inclusive entre verdade e história, é fictícia. É possível rechaçar o fundamento de tipo kelseniano, essa espécie de proeza da absolutização, sem cair no vazio relativista. A pretensão de universalidade dos juristas está fundamentada em uma norma fundamental. Há que se abandonar a questão do fundamento e aceitar que o direito, igual à ciência ou à arte (os problemas são os mesmos em matéria de direito e de estética), pode estar fundamentado unicamente na história, na sociedade, sem que por isso sejam aniquiladas suas pretensões de universalidade.
A noção de campo (tomada em um sentido rigoroso que não tenho tempo de explicar aqui)[2] está aí para recordar que esse sistema de normas autônomas, que exerce efeito por sua coerência, por sua lógica etc., não caiu do céu nem surgiu inteiramente armado de uma razão universal, mas tampouco é, no entanto, o produto direto de uma demanda social, um instrumento dócil nas mãos dos que dominam. Há aí uma falsa alternativa que impede que se perceba que o direito, em sua coerência de sistema de leis, é o produto de um prolongado trabalho de sistematização acumulativo, mas de uma cumulatividade que não é a da ciência; de um trabalho de produção de coerência, de “racionalidade”, que se realiza em um espaço particular, que eu chamo de campo, ou seja, um universo em que se joga um jogo determinado segundo determinadas regras e no qual não se entra sem que se pague pelo direito de entrada, como o fato de se possuir uma competência específica, uma cultura jurídica, indispensável para jogar o jogo, e uma disposição a propósito do jogo, um interesse pelo jogo, que denomino illusio (Huizinga, baseado em uma falsa etimologia, diz que illusio vem do latim in ludere, jogar em, ou seja, ser iludido pelo jogo, ser pego pelo jogo[3]). O que um campo exige, fundamentalmente, é que se creia no jogo e que se considere que ele mereça ser jogado, que ele vale à pena.
Alain Bancaud (deveria ter dito, ao iniciar, que uma parte muito importante de minhas reflexões tem sido inspirada pelas discussões mantidas no seminário sobre direito que organizei no Collège de France); Alain Bancaud, então, comenta muito inteligentemente uma noção produzida pelos juristas: a de “piedosa hipocrisia”, ou seja, essa espécie de truque (cujo equivalente pode ser encontrado em todos os campos profissionais: é o oráculo que diz que o que ele diz foi a ele revelado por uma autoridade transcendente)[4] através do qual o jurista dá por fundamentado a priori, dedutivamente, algo que está fundamentado a posteriori, empiricamente. Essa piedosa hipocrisia é exatamente o princípio do que chamo de capital simbólico, que consiste em se obter um reconhecimento baseado no desconhecimento. A violência simbólica, neste caso, consiste em fazer parecer como fundamentadas em uma autoridade transcendente, situada além dos interesses, das preocupações etc. de quem as formula, proposições, normas, que dependem em parte da posição ocupada em um campo jurídico pelos que as enunciam. A análise da violência simbólica permite dar conta do efeito próprio do direito: o efeito de autolegitimação por universalização ou, melhor, por des-historicização.
Contudo, para conseguir este efeito de legitimação deve ser pago um preço, e os juristas são de algum modo as primeiras vítimas de sua própria criação jurídica. Tal é o sentido da illusio: só fazem crer porque eles mesmos crêem. Se contribuem à influência exercida pelo direito é porque eles mesmos caíram na armadilha, em particular no final de todo o trabalho de aquisição da crença específica no valor da cultura jurídica, trabalho que é extraordinariamente importante para se compreender o efeito que o direito irá exercer não apenas sobre os justiçáveis mas também sobre os que exercem este efeito.
Para simplificar, e com o risco de reduzir as coisas a slogans, é possível dizer que a retidão [droiture] dos que dizem o direito é um dos fundamentos do efeito que o direito exerce no exterior e ao mesmo tempo um efeito que exerce o direito sobre os que exercem o direito, e que, para ter direito a dizer o direito, devem ser “retos” [“droits”]. Poderia referir-me uma vez mais ao que diziam Alain Bancaud, Yves Delazay ou Anna Boigeol[5]: a construção do habitus do jurista comporta todo um trabalho que parece ter por finalidade a aquisição de uma postura física, corporal, de magistrado, combinação de ascese, de reserva e de todo um conjunto de virtudes que são a materialização em disposições corporais das leis fundamentais do campo jurídico como espaço autônomo em relação às constrições externas.
A autonomia do campo jurídico, igualmente à autonomia do campo literário ou a autonomia do campo religioso, afirma-se fundamentalmente sobre a economia. Ser autônomo é estar à distância da economia, é ser desinteressado, é ser puro, uma oposição que separa o universo jurídico do universo dos negócios, mas que volta a se encontrar no próprio seio do campo jurídico sob a forma da oposição entre o direito privado e o direito empresarial, sob a forma de uma hierarquia no interior do espaço do direito (cuja equivalência pode ser encontrada no campo literário na oposição, por exemplo, entre a arte pura e a arte comercial): a oposição que se estabelece entre um direito puro, desinteressado e exercido por pessoas que invocam exclusivamente a competência do jurista, e manifestam com todo seu habitus até que ponto estão longe dessas realidades materiais um pouco abaixo das que se ocupam os demais juristas, e, no outro extremo, formas de direito desacreditadas por diferentes razões: de um lado o direito empresarial, sobre o qual diz-se estar corrompido, mesclado com o século, e, de outro lado, o direito social, que é inferior por misturar-se com as coisas do vulgo. Aí voltamos a encontrar uma lei verdadeiramente geral em relação aos campos: a posição na hierarquia de um campo autônomo depende parcialmente da posição da clientela correspondente no espaço social.
Não basta dizer que o direito produz-se e se exerce em um espaço relativamente autônomo em que os efeitos das coerções econômicas e sociais só se exercem de um modo mediatizado. Também é necessário recordar que o campo jurídico é um lugar de lutas, mas de lutas que, inclusive quando tratam de transformar as regras do direito, de operar uma revolução jurídica (como é o caso do âmbito do direito empresarial), têm que produzir-se segundo as regras. As lutas de concorrência no interior do campo jurídico, por exemplo, as lutas pela conquista de mercados, tomam a forma de lutas de competências (usando “competência” no sentido jurídico) pela competência – ou seja, por exemplo, o monopólio legítimo de um determinado mercado –, que são inseparavelmente lutas jurídicas e lutas econômicas. Eis aqui um dos mecanismos pelos quais a lógica jurídica penetra nas condutas inclusive de quem a transgride.
Conheceis o dito segundo o qual “a hipocrisia é uma homenagem que o vício tributa à virtude”, e eu havia falado antes de piedosa hipocrisia. Caberia dizer que a piedosa hipocrisia jurídica é uma homenagem que os interesses específicos dos juristas tributam à virtude jurídica; e em certo modo, quando se está no jogo jurídico, não se pode transgredir o direito sem reforçá-lo. Quando se pertence a um campo cuja lei fundamental é a da recusa de dinheiro, é ser desinteressado etc., inclusive quando se transgride esta lei, e sobretudo quando se a transgride para fazer algo comercial, está-se condenado a render homenagem aos valores dominantes do campo até no próprio movimento por os questionar.
Se, por exemplo, em vez de expor em termos abstratos os problemas das relações entre o direito e a economia se estuda em concreto a evolução recente do direito empresarial[6], é possível ver-se levado a não a se perguntar se o direito é independente da economia ou está determinado por ela, senão a observar como o direito penetra na economia e como, para penetrar a economia, deve absorver a economia. Alguns sociólogos americanos falam de “litigociação”[7], ou seja, desse tipo de negociações entre grandes empresas que têm por objeto poupar processos. O direito forma parte da realidade econômica; um bom agente econômico deve integrar a existência do direito como força social real em seus cálculos propriamente econômicos. Os agentes jurídicos têm contribuído para produzir a necessidade de seu próprio produto ao produzir universais em quem já não pode atuar sem necessitar deles.
É possível tomar outro exemplo, o da arbitragem[8], que apresenta concretamente um problema muito abstrato: o da legitimidade. No caso dos árbitros, no momento do divórcio, sobre a custódia da criança, adverte-se que o problema que se apresenta aos possuidores do caráter de experts jurídicos é de formular um veredicto que seja preditivo do que irá ocorrer e que contribua com aquilo que irá ocorrer: se confio a criança à mãe e não ao pai é em nome do “interesse da criança”, e portanto, isso é uma predição acerca da pessoa mais capaz de cuidar da criança, predição que supõe a intervenção de um expert, da ciência. O problema das relações entre direito e ciência aparece aí de um modo inteiramente concreto. Trata-se dos princípios de legitimação diferentes, que irão encontrar-se em complementaridade e em concorrência, ao ser a racionalização uma nova arma da legitimidade.
A força específica do direito é muito paradoxal, quase impensável. É necessário voltar-se a Marcel Mauss e sua teoria da magia. A magia só atua em um campo, ou seja, um espaço de crença em cujo interior estão os agentes socializados de maneira que pensem que o jogo que jogam merece ser jogado. A ficção jurídica não tem nada de fictício: e a ilusão, como diz Hegel, não é ilusória. O direito não é o que diz ser, o que crê ser, ou seja, algo puro, completamente autônomo etc. Mas o fato de que se creia nisso, e que se logre fazer crer, contribui para a produção de efeitos sociais completamente reais; e a produzi-los, acima de tudo, em quem exerce o direito.
Os juristas são os guardiães hipócritas da hipocrisia coletiva, ou seja, da reverência ao universal. A reverência verbal concedida universalmente ao universal é uma força social extraordinária e, como todos sabem, os que conseguem ter de sua parte o universal dotam-se de uma força nada desprezível. Os juristas, enquanto guardiães hipócritas da crença no universal, detêm uma força social extremamente grande. Mas estão presos em seu próprio jogo, e constroem, com a ambição da universalidade, um espaço de possibilidades e, portanto, também de impossibilidades, que a eles mesmos impõem-se, queiram ou não, na medida em que pretendam permanecer no seio do campo jurídico.
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NOTAS
[1] Este texto corresponde à tradução para o português de uma transcrição vertida ao espanhol (a cargo de J.-R. Capella) de uma exposição oral de Pierre Bourdieu, publicada originalmente em francês em F. Chazel e J. Commaille (eds.) Normes juridiques et régulation sociale (L.G.D.J., Paris, 1991). Esta tradução em português, que igualmente à versão espanhola evita retirar o caráter coloquial da exposição, foi realizada por Eduardo Emanoel Dall’Agnol de Souza.
[2] P. Bourdieu utiliza neste seminário, entre outros, dois conceitos técnicos próprios: os de habitus (que se traduz por “hábito”) e “campo”. Para ambos é útil ver a “Introdução” de A. García Inda (“La razón del derecho: entre habitus y campo”) no livro de P Bourdieu Poder, derecho y clases sociales, Desclée de Brouwer, Bilbao, 2000. Para o leitor familiarizado com a obra de Bourdieu, haveria que aclarar superficialmente: um “campo” é para Bourdieu um espaço social específico em que as relações se definem segundo um tipo de poder ou capacidade também específico possuído pelos que “jogam” neste espaço social. As posições dos agentes no campo definem-se segundo sua posição atual ou potencial na estrutura de distribuição do poder específico do campo em que pretendem jogar (seja o artístico, o político, o religioso, o jurídico etc). Um habitus, o hábito, é um conjunto específico de práticas, acima de tudo; de disposições duradouras que geram práticas e representações específicas e regulares adaptadas à finalidade própria do jogo em um “campo”. [Nota da tradução espanhola]
[3] Deve-se notar, contudo, que Joan Corominas, em seu Breve diccionario etimológico de La lengua castellana (Gredos, Madrid, 1973), deriva “ilusão” do latim “illudere”, enganar, que por sua vez deriva de “ludere”, jogar. O parentesco entre “ilusão” e jogo” aparece também através da raiz “leid”, em E. A. Roberts e B. Pastor, Diccionario etimológico indoeuropeo de la lengua española (Alianza, Madrid, 1996). [Nota da tradução espanhola]
[4] Alain Bancaud, “Une ‘constance mobile’: la haute magistrature”, Actes de la Recherche en Sciences Sociales, nº 76/77, março de 1989, p. 30-48.
[5] Cf. a revista Actes de la Recherche en Sciences Sociales, nº 76/77, março de 1989, in “Droit et expertise”.
[6] Yves Dezalay, “Le droit des faillites: du notable à l’expert. La restructuration du champ des professionnels de la restructuration des entreprises”, in Actes de la Rechereche en SciencesSociales, nº 76/77, março de 1989, p. 2-29.
[7] Yves Dezalay, ibid.
[8] Irène Thèry, “Le savoir ou savoir-faire: l’expertise dans les procédures d’attribution de l’autorité parentale post-divorce”, in Actes de la Recherche en Sciences Sociales, , nº 76/77, março de 1989, p. 115-117.

2 comentários:

  1. parabens pela divulgação desse texto de Bourdieu, faz todo operador do direito desejar ser algo alem de mero reprodutor de ideias preconcebidas com o intuito de se manter o sistema. (

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  2. parabens pela divulgação desse texto de Bourdieu, faz todo operador do direito desejar ser algo alem de mero reprodutor de ideias preconcebidas com o intuito de se manter o sistema. (

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