15/03/2011

Direitos Humanos, mas como?

Segue abaixo um texto do Prof. Miguel Lanzellotti Baldez, publicado anteriormente no Cadernos Najup nº 1, de novembro de 2006. Baldez, é militante dos movimentos sociais para conscientização e luta por direitos, ex-Procurador do Estado do Rio de Janeiro, ex-professor da Universidade Candido Mendes - demitido por liderar o movimento de conscientização e greve dos professores da instituição, que estavam com seus salários atrasados há mais de um ano -, e professor aposentado da UERJ.
O texto abaixo traz uma visão marxista de um possível desmonte da Constituição Cidadã a partir de um projeto neoliberal e da dimensão ideológica dos Direitos Humanos. Mas talvez a parte mais interessante seja que o texto nos ajuda a pensar sobre o processo histórico de construção da cidadania brasileira. Para ele, as demandas populares, que tomaram as ruas do país desde o início da década de 1980, foram cooptadas para dentro da Assembléia Nacional Constituinte de 1987 (com intensa participação dos juristas nisso), transformando a cidadania política em cidadania jurídica.
Boa leitura e boas reflexões!!

DIREITOS HUMANOS, MAS COMO?

Miguel Lanzellotti Baldez

Quando a ditadura militar deixou o procênio político, o discurso institucional fixou-se na integrativa proposta de reconstrução da democracia. Era projeto de todos ou quase todos, universalizado nas variadas instâncias sociais, desde os fundamentos comunitários e sindicais até a mídia globalizada e meios outros de mediação da nação.
Naquele momento histórico, a ação, organizada ou não, do povo levou às ruas do país inteiro a luta pelas eleições diretas, “Diretas-já!” dizia o grito há tanto tempo reprimido. Perderam-se as eleições diretas, e foram elas perdidas, como já se disse em outro texto, em dois tempos: o primeiro, com a estrutura político-militar assegurando contra o anseio do povo a simulação das indiretas, depois, quando o acaso, auxiliado pela dramática aliança entre a incompetência e a demagogia, arrebatou da vida o presidente indiretamente eleito e sacralizado como ícone democrático. Foi assim que a festa das diretas, como o Quincas Berro D’agua, morreu duas vezes.
O processo de democratização passaria necessariamente pela reconstituição do Estado e a conjuntura histórica, tanto nacional como internacional, naquele ponto de chegada e de partida, confluía, em seus efeitos mais aparentes, para a reconceituação da sociedade brasileira sobre fundamentos de claro compromisso com a dignidade da pessoa humana como razão primeira. Entre o fim do antigo regime e o início do novo, atravessava-se um campo de esperanças populares e indefinições institucionais. Pois aqui se tem um fato cuja complexidade merece algum detimento. A instância jurídica, no jogo das contradições, não possuía idoneidade suficiente para sobre-determinar a instância política, que, livre das amarras próprias do Estado burguês, poderia ultrapassá-lo e lançar as bases de outro Estado, verdadeiramente comprometido com as necessidades e lutas populares.
O povo estava nas ruas e era preciso contê-lo, privando-o de concretude e realidade, subjugando-o às teias da rede universalizante das abstrações jurídicas, era necessário eliminá-lo como ser-em-si para recriá-lo como ser jurídico, ou ideológico, e por isso autorizado a existir no campo das relações sociais, cidadão, portanto. O homem e a mulher deixariam de lutar por conquistas concretas preconcebidas em ações, também concretas, dos movimentos sociais e sindicais, e passariam a lutar para serem iguais, mesmo sabendo que tal igualação só poderia ser alcançada fora de si, fora do movimento, submetendo-se, enfim, à subjetivação das abstrações. Enquanto na luta política o homem só se identifica a si mesmo na medida em que se reconhece nos companheiros, na instância jurídica ele só é reconhecido enquanto subjetivado e individualizado por normas e regras abstratas.
À estrutura formal do poder não foi difícil, antecipando a tutela jurídica da ação política, abrir, com aparência democrática, o campo jurídico à participação popular. Mesmo não se compondo o fundamental congresso constituinte adequadamente eleito, criaram-se, no Congresso que já se tinha, fendas ou respiradouros, com o objetivo de canalizar para o bojo da virtual Constituição, através de meios formais, os grandes projetos comunitários então em debate na sociedade. Capturava-se assim, a força política do povo em movimento para abrandá-la em formas jurídicas e direitos, de pressupostas políticas públicas. A lição era clara e deveria fecundar a compreensão e o comportamento do gentio mobilizado, não mais tão atuante, mas ainda tocado pelo aguilhão da ditadura militar: a conquista da vida, da saúde, da educação, da terra de plantar no campo e da terra de morar na cidade, das figuras humanizadas das crianças e do adolescente em lugar do criminalizado menor, em suma, a conquista da dignidade da pessoa humana e da cidadania passariam pela emolduração do Direito antes de consagradas, nas prática democráticas, em direitos, garantias e liberdades individuais e coletivas.
Foram-se todos à via juridicista, sem perceber que, à espreita, de longe no tempo, estava a sombra do liberalismo radical, ou neoliberalismo. Ganhou-se, com todas as dificuldades, uma Constituição de bem definidos e expressivos fundamentos e razoáveis meios democráticos de emancipação política, comprometida com a produção de uma sociedade mais solidária e, no campo socioeconômico, mais igualitária.
Desde o preâmbulo, primeiro compromisso do traçado constitucional, despontam o homem e a mulher não em si mesmos, mas na rede de relações sociais da vida. Embora sem a legitimidade formal adequada, diziam os congressistas em conteúdo de boa essência que o objetivo deles era “instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social...” Anote-se que o Preâmbulo não é apenas uma referência ideológica, como alguns, inclusive Hans Kelsen, pretendem, valendo mais como vínculo ou relação conceitual entre a vontade do povo e a vontade da lei, segundo a vocação política do positivismo(1). Esse compromisso fundante já se vê solenemente afirmado na abertura do texto constitucional, precisa e principalmente nos marcos da dignidade da pessoa humana e da cidadania (item III e II do Art. 1º, propositalmente invertidos), tipos que só se articulam como pressuposição de vida no campo das abstrações conceituais, embora devessem assegurar, na concretude dos fatos, efeitos reais. A fonte deste item, o fundamento da dignidade da pessoa humana, parece ter sido a Constituição espanhola de 1978, ato de reconstrução formal da democracia naquela nação, e cujo teor merece ser transcrito, para melhor apreender-se o sentido integral e o valor do compromisso institucional brasileiro: “A dignidade da pessoa humana, os direitos invioláveis que lhe são inerentes, o livre desenvolvimento da personalidade, o respeito à lei e aos direitos dos demais, são fundamentos da ordem pública e da paz social”. Não de uma paz social meramente formal, distanciada das contradições históricas e restrita à remoção judiciária de eventuais conflitos de interesses individuais ou tecnicamente individualizados.
Tanto na Espanha como aqui, o princípio da dignidade da pessoa humana está imbricado, em continuada relação de reciprocidade, no conceito, também princípio, de cidadania, e atravessa todo o campo constitucional, submetendo-lhe o conteúdo, em apropriadas positivações, aos princípios universais dos direitos humanos(2). Assim, em suas especificidades, ressoa nos princípios objetivos previstos no art. 3º, também do campo dos princípios fundamentais, de cujo finalismo decorrem os compromissos com a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, a erradicação da pobreza e da marginalização e a redução das desigualdades sociais e regionais, bem como, de modo abrangente, a necessidade definitiva de construir o bem de todos, com o significado de partilha social, e sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação, ressoa ainda no campo dos direitos individuais e, notadamente, coletivos, na ordem econômica, na ordem social, na terra, no campo e na cidade, no respeito às nações indígenas e no trato das comunidades negras. O homem no centro da vida social, mas envolvido na dialética do processo histórico. Pois apesar da festa democrática, porta fechando-se sobre o mau tempo da ditadura militar, já se avizinhava a chegada do neoliberalismo, apetrechando-se como senhor do mundo para endurecer e radicalizar o capital. Recorde-se que nesta segunda metade do século XX coincidiram no tempo essa aparentemente tímida renovação liberal, reencontrado fundamento do capitalismo, e a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Enquanto no pós-guerra assentavam-se na Europa as bases do Estado de bem-estar(3), Friedrich Hayek, autor do ensaio O caminho da servidão, de compromisso com o mercado, fundou, em 1947, em Mont Pèlerin, na Suíça, com celebradas personalidades do universo capitalista, o projeto conteudístico da ideologia neoliberal(4). Embora as diferenças aparentes entre liberalismo político e liberalismo econômico, o liberalismo em si, fincando-se no homem o fundamento do processo histórico, está na raiz do trajeto neoliberal e da Declaração Universal dos Direitos do Homem, na medida em que a plenitude democrática, no viés do capital, só seria alcançada pela via da plenitude econômica.
Assim, muito menos que uma ressalva do Estado de bem-estar social, o pleno respeito aos direitos do homem e da mulher teria como pressuposto a concretização do projeto neoliberal. Mas fora possível isso acontecer nos países de economia avançada, certamente não o seria nos chamados periféricos, ou terceiro-mundistas, ou subdesenvolvidos, ou que nome se lhes possa dar. A esses se aplicariam as regras de dominação globalizadas pelo neoliberalismo sob a gestão financeirista de FMI (Fundo Monetário Internacional)(5), um bem conhecido receituário de números, fórmulas, ações, fluxos e refluxos de capitais.
No Brasil, os fatores de resistência democrática à ditadura militar e as lutas pela sua derrubada, mesmo deslocando-se para o campo juridicista, acabaram por tecer na Constituição Federal, como já se viu, competente complexo de direitos, liberdades e garantias, óbice que, apesar de removível através de pequenos golpes institucionais, como a frustrada tentativa de revisão e as emendas constitucionais, impediu de início a implantação e o avanço do neoliberalismo com seu radicalismo fundamentalista.
O ataque neoliberal, entretanto, não se fez esperar por muito tempo. A primeira tentativa veio logo, valendo-se eles do dispositivo constitucional autorizativo da revisão. Frustrou-se, mais pela incompetência dos agressores que pelas virtudes dos democratas. Na segunda tentativa, porém, foram muito bem sucedidos. Através do mecanismo das emendas constitucionais já fizeram no essencial e estão concluindo nos detalhes o desfazimento da Constituição. Nessa segunda investida, com grande habilidade, não se preocupam em cortar direitos e liberdades, ao contrário, deixaram-nos formalmente sobrevivos no texto, e atacaram, sem dó nem piedade, os fundamentos econômicos, que os especialistas chamam, no conjunto, Constituição econômica. Com a desestruturação desses fundamentos de sustentação do Estado, abriram-se todas as defesas de Pindorama, ou desta quinhentona simulação de pátria-amada, a agressões das mais variadas naturezas nos mais diversos campos da soberania nacional, interna e externamente. Dos títulos que compõem a Constituição, o primeiro a ser desmontado foi o relativo à ordem econômica, revogando-se especificamente: (a) em favor do capital internacional, os benefícios concedidos ao capital nacional; (b) o controle rígido de recursos minerais e potenciais de energia elétrica; e (c) o monopólio do petróleo(6).
Esse, o interesse do capital, o bem sucedido ponto de partida. A revogação dos principais fundamentos da Constituição econômica (Título VIII, Da Ordem Econômica e Financeira) tornou infrutíferos os compromissos sociais constitucionalizados e permitiu o esvaziamento da essencialidade do país. J.J. Gomes Canotilho, no Fundamentos da Constituição, em que analisaram os fundamentos da Constituição portuguesa, bem explicam a relação de valor ou desvalor entre os direitos fundamentais e a estrutura econômica das Constituições: “Em primeiro lugar, os direitos fundamentais não são na Constituição apenas direitos negativos contra a intervenção do Estado; são também direitos positivos, direitos e ações do Estado, contra as carências individuais e sociais”; e em outro ponto do mesmo texto: “Trata-se de um reflexo, no plano dos direitos fundamentais, da relação de tensão entre a Constituição política e a Constituição econômica, ou seja, mais globalmente, do compromisso fundamental que está na base de toda a Constituição(7).
Nesse primeiro ataque à soberania do país depois da Constituição Federal, articulado com setores internacionais, mas executado por servis neoliberais brasileiros, rompeu-se, com sucesso, a relação estrutural entre a “componente democrática – constituição política – e a componente social – constituição econômica”(8), ficando a economia brasileira financeirizada e submissa à nova ordem imperial e suas implacáveis instituições – “o Fundo Monetário Internacional, o Banco Mundial, estruturas comerciais como o NAFTA e encontros executivos do G-7, como alerta Noam Chomsky (A Minoria próspera e a Multidão inquieta). Substituiu-se a base econômica, que tornaria concretos e efetivos, na concepção constitucional, os direitos e garantias sociais, pela procura da confiabilidade internacional, mito criado para justificar ideologicamente a inserção do Brasil na chamada nova ordem internacional. Pois sem sustentação econômica, conteúdo da Constituição Econômica, perderam-se, pelo esvaziamento, aqueles direitos e garantias – vida, saúde, educação, reforma agrária, reforma urbana etc., e, na raiz do fundamento econômico, o direito ao emprego.
Como tratar – pergunte-se agora – de direitos humanos neste Estado cuja desconstitucionalização tornou inexeqüíveis os direitos fundamentais já positivados no campo institucional? Impossível será, parece claro, conciliar o conceito de direitos humanos em seu sentido social com o curso histórico do neoliberalismo, em cujo processo se deu o desenraizamento do homem em suas relações vitais com a sociedade, isolando-o e excluindo-o. Não se tem mais, institucionalizadas, no campo dos direitos humanos garantias e prerrogativas, e não são suficientes as intervenções pontuais de ONG’s e de pessoas bem intencionadas. Enquanto se perdem ou se reduzem as garantias essenciais, a violência vai crescendo e tornando-se extensiva e de alcance gradativamente coletivo, no elevado índice de desemprego, nas doenças endêmicas e epidêmicas, nos despejos massivos, nas agressões institucionais ou não, no encarceramento judiciário de crianças e adolescentes etc.
Não será fácil identificar e construir novos mecanismos e caminhos de emancipação, quando se tem um quadro social como este que aí está diante de todos, com persistente generalização da miséria e perda quase total dos requisitos de sobrevivência por grande parcela da população. A exclusão hoje tem fortes características de genocídio. Veja-se, nas relações globalizadas pelo capital financeiro, comparativamente com a acumulação na ponta da miséria, envolvido em recíprocas guerras de extermínio e assolado por seguidas epidemias. Ainda nessa vertente dramática, regiões do norte e do nordeste brasileiros e bolsões e guetos de miséria incrustados em suas principais cidades, como São Paulo e Rio de Janeiro. Enquanto isso, na ponta do capital o avanço da tecnologia e da informática não encontram limites, nem quanto à lucratividade, sem limites e apropriadas pelo capital e seus senhores e administradores no interesse exclusivo da acumulação e da produtividade. O grande desafio parece estar na compreensão do homem e de sua capacidade de resistência nessa dialética da exclusão. No sentido universal, todos apostam nos sucessos da tecnologia, alguns, entretanto, aqueles comprometidos com a revolução social, tem como imprescindível submetê-los aos interesses solidários da coletividade. Sem neo-ludismos mas confrontando os avanços da técnica com os meios possíveis de resistência à sua perversa destinação capitalista.
Boaventura de Sousa Santos integra, na mesma ação predatória dos conquistadores europeus, genocídio e epistemicídio. Segundo ele, faces da mesma moeda, não há genocídio sem epistemicídio. O texto é fecundo e merece transcrição: “eliminaram-se povos estranhos porque tinham formas de conhecimento estranho, porque eram sustentados por práticas sociais e povos estranhos”(9).
Na história, epistemicídio sempre “foi mais vasto que o genocídio, sempre ocorreu quando as práticas sociais ameaçavam as práticas capitalistas”. (Boaventura diz o mesmo relativamente às práticas da ex-União Soviética). Hoje, com o neoliberalismo e o mito da globalização, o epistemicídio se dá pela exclusão dos povos subalternos, que não têm (nem vão ter alguma hora) acesso ao saber produzido pela ininterrupta e veloz produção tecnológica, subjugada pelo capital e por isso, como se viu, voltada exclusivamente para a acumulação capitalista; e o genocídio, que já não carece de armas e escudos de ferro, decorre naturalmente da incapacidade dos excluídos de se apropriarem e se beneficiarem dos novos meios de produzir. Sobra-lhes, na lógica do sistema, miséria e morte.
A retórica dos Direitos Humanos, mesmo nas ações concretas residuais, soa mais como grito de alarme e esperança, e é muito útil que se continue gritando e acalentando a esperança; paciência e otimismo, como dizia um velho militante, são virtudes fundamentais. Quanto àqueles direitos e garantias positivados na Constituição, embora ainda com existência formal, são apenas fantasmas da cidadania perdida. Os direitos humanos, ou vão ser recriados e repostos nas lutas sociais coletivas dos oprimidos e excluídos, com a construção solidária de uma nova sociedade verdadeiramente democrática , ou ficarão de vez enformados em ações individualistas de escassa ou nenhuma conseqüência . Com o advento do modo de produção capitalista, o juridicismo dividiu o trabalhador. Se, no escravismo e na servidão era apenas objeto, sob o regime instaurado pela burguesia passou a ser, a uma só vez, sujeito e objeto, capaz de contratar sendo sujeito, e de ser, como mercadoria-força de trabalho, objeto de contratos.
Hoje, com a radicalização do capital, a robotização, a informática, a financeirização e a insaciabilidade do processo de acumulação de riquezas, que, do lado capitalista, exclui e extermina, o trabalhador está sofrendo intenso e continuado ataque à sua força de trabalho, e, conseqüentemente, por lhe arrancarem a única mercadoria que o capitalismo lhe reservara, à sua subjetivação jurídica, perfeitamente dispensável em quem já não tem mercadoria alguma a oferecer nos limites. Traçados e impostos pelo mercado. Não é à-toa que, engrossando o ataque ao trabalhador, forças institucionais fiéis ao capital querem extinguir a justiça do trabalho, mecanismo judiciário de fato incompatível com a lógica do neoliberalismo. Mas se o trabalhador fica fora do campo de produção não quer isso dizer que fique fora do processo capitalista, pois o próprio capital, “engendra e reproduz relações não capitalistas de produção”(10). Aos trabalhadores sobram como alternativas, pequenos trabalhos pessoais, biscates, as “quitandas” do narcotráfico e tantas outras, mas, de forma mais maciça e parecendo definitiva, o desemprego. Ou desprovido de qualquer trabalho ou evolvido em formas pré-capitalistas da produção capitalista, os direitos fundamentais, que pressupõem igualdade social, econômica e política e não apenas formalizados, tais fundamentos remanesçam, sem vida, na Constituição.
Com a perda da Constituição e correndo-se o risco de que além da ruptura do sistema defensivo das raízes sócio-econômicas da nacionalidade, se dê a jurisdicização dos interesses multinacionais através do Acordo Multilateral sobre investimento, está se fechando o processo de recolonização das nações do terceiro mundo(11), e destruindo-se os poucos mecanismos de resistência do povo brasileiro ao competente ataque as multinacionais, internamente, pela exclusão social, dá-se a dessubjetivação das camadas subalternas.
Mesmo a concepção liberal de direitos humanos, centrada no indivíduo, como a definiu a Declaração Universal, limita-se a inexpressivo conjunto de simulações institucionais, ainda quando, pelo esforço pessoal de seus integrantes um que outro resultado seja obtido, como é o caso GETRAF – Grupo de Repressão ao Trabalho Forçado e Comunidade Solidária.
Se, com a subjetivação, uma das características do direito burguês, o homem, para o bem (reconhecimento no campo jurídico) e para o mal (submissão ao controle do Estado e da empresa), se personalizava em direitos, com a dessubjetivação, descaracteriza-se como pessoa e vai perdendo o dom de ser também mercadoria, ou força de trabalho, isso pelo descarte que dele faz, de um lado, a financeirização da economia, de outro, o vertiginoso avanço do processo tecnológico, sob o controle e para os fins acumulativos do capital. Passa a ser, de uma só vez, ninguém e nada, na verdade socialmente passa a não ser. O trabalhador, enfim, nem mercadoria sendo, é utilizado como barragem, ou, outras vezes, moeda de troca, contra os ataques da especulação internacional. É como se o governo brasileiro, desveladas as mediações ideológicas, dissesse aos grandes banqueiros internacionais, diretamente ou através de suas representações (FMI, por exemplo): - tomem lá, levem tantas vidas, tantas quotas de saúde e tantas outras de educação em troca de credibilidade perante a banca, e conseqüentemente, de novos empréstimos.
Pois só aceitando outros pressupostos e incorporando lutas transformadoras, como a reforma agrária, as reformas urbana e sindical, será possível construir de fato uma nova teoria de direitos humanos, fundada no coletivo e na solidariedade como razão e princípio de vida. São lutas que não se constroem ou reconstroem sobre fantasias ou ledas intenções, ao contrário, pressupõem história pontual ligada a experiências concretas. A reforma agrária e a reforma urbana, com todas as suas especificidades características, como terra, habitação, saúde, educação, créditos, são bons exemplos. Em cada processo vai se formando uma relação típica e a compreensão recíproca de interesses e sociedades comuns que vão engendrar e reforçar demandas, um novo poder e a consciência de novos direitos, positivados ou a construir no curso das lutas, e o bom exemplo é a ocupação de terras, consagrada na prática do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra). Aqui não há como deixar de discernir na base da ação concreta um corte de classe. As camadas privilegiadas da população já construíram, no campo privado, seus espaços e liberdades. Embora o país tenha em seu elenco de vergonhas – ou por isso mesmo -, entre todos os países, o pior índice de distribuição de rendas, os ricos acumularam, na escala social, o melhor nível de moradia, em suntuosos prédios e condomínios fechados, medicina e hospital de primeiro mundo, educação e lazer qualificados e, principalmente, pela apropriação indireta da vontade e das necessidades sociais através da mídia, garantia de perpetuidade na posse do poder político institucional.
No confronto com o neoliberalismo os direitos humanos, nesse confronto uma prática de necessidade absoluta, serão compreendidos, construídos e, talvez, uma hora constitucionalizados, a partir do adensamento dos movimentos populares e sindicais e da descoberta de outros meios de emancipação. Não é que se tenha esgotado a modernidade em confusa e mal definida pós-modernidade, apenas da modernidade mudaram-lhe o curso em formas e caminhos mais apurados de dominação, ao invés de guerras armadas de destruição e extermínio, de que ainda se valem pontualmente com furor genocida, o extermínio e a dominação agora se fazem, com maior eficácia, com armas econômicas e financeiras e seus aparatos tecnológicos.
Na concreção dos meios emancipatórios, duas vertentes devem ser compreendidas e trabalhadas. A primeira está nas lutas e no poder popular que delas decorre, a segunda inspira-se nas sobras da Constituição, especialmente no caráter, presentativo da democracia direta nela previsto ao lado da tradicional representatividade típica das constituições burguesas (“Todo poder emana do povo, que o exerce por meio dos representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”).
Como bem ressalta Boaventura de Souza Santos (o Discurso e o Poder), nas sociedades capitalistas a homogeneidade jurídico-política é sempre precária e “produto concreto das lutas de classes, e esconde, por isso, contradições que não são nunca puramente econômicas. Estas contradições podem assumir, entre outras formas de incidência, diferentes expressões jurídicas, reveladoras, na sua relativa especificidade, dos diferentes modos por que se reproduz a dominação político-jurídica"(12). Não são puramente econômicas pois se refletem ou determinam em outras instâncias do processo histórico, como a social e a jurídica, mas são fundamentalmente econômicas. No caso dos países terceiro-mundistas, tais contradições, com a radicalização capitalista do neoliberalismo, aguçaram-se até os extremos da exclusão, ou da precária inclusão em recriadas formas de produção pré-capitalista, de pouca serventia e nenhuma esperança de vida. Na medida, porém em que excluídos e precariamente incluídos se aglutinem em experiências comunitárias e sindicais, e descubram o espaço e o tempo de reorganização coletiva, o processo de emancipação, já retomada na ação e nas propostas ampliadoras do MST, será inevitavelmente consolidada na prática mais constante e multiplicada do poder popular. Esse poder, sempre antevisto, inclusive na estrutura constitucional, mas pouco discutido, que se revela nas ações coletivas, sindicais e comunitárias, está a exigir dos destituídos meios mais eficientes de intervenção política, independentes das injunções e aparelhamentos partidários, quando mesmo os partidos aparentemente comprometidos com as lutas do povo vão conciliando, com divergências de pouca monta, e aceitando no fundamental, na raiz, para inverter o tônus da radicalização a agenda do neoliberalismo.
A outra vertente, a da Constituição, dá o indicativo para a ação popular que se queira eficiente no sentido absoluto de democracia. Primeiro, ao estabelecer, ao lado da participação indireta por representações, a participação direta do povo na produção política da sociedade (o referido art. 1º da Constituição Federal).
Segundo, ao prever nos pontos vitais de concreção da Constituição os mecanismos adequados para torná-la efetiva nos fatos, referindo, em todos os campos de repercussão social dos princípios fundamentais, a necessidade de abrir a burocracia formalística do institucional à participação popular.
É assim no tratamento dado aos municípios que, entre outros preceitos, devem garantir, nas respectivas leis orgânicas, a cooperação de associações representativas do povo do planejamento municipal e a iniciativa popular nos projetos de lei (Art. 29, XII e XIII). O mesmo se dá no campo da ordem social, na regulação da seguridade social, da saúde (Art. 198, III - "participação da comunidade"), da assistência social (Art. 204, II - "Participação da população, por meio de organizações representativas, na formulação das políticas e no controle das ações em todos os níveis"), da cultura (Art. 216, $1º). De nota, ainda, no Estatuto da Criança e do Adolescente, os Conselhos de Direito e Tutelares.
Dir-se-á como objeção aos Conselhos instituídos que, por serem paritários, dificilmente escaparão ao controle político da administração pública. Pode ser mas não parece razoável desprezá-los nessa modalidade administrativa, pois ainda assim podem constituir, apesar das limitações, importantes espaços de reivindicações específicas.
Mas é no processo das lutas sociais que a criação de conselhos populares, significativos e representativos dos interesses e das necessidades dos excluídos, se revelam e impõem, como aconteceu em todos os momentos de ponta das grandes transformações históricas (A comuna de Paris, a revolução soviética, a revolução portuguesa, a revolução cubana, os conselhos de fábrica, etc.), como fundamento da ação política das massas. No caso concreto do Brasil de hoje, compreendendo-se eles no espaço próprio dos municípios, único solo concreto da estrutura constitucional federativa, se criados em função das lutas vitais (saúde, educação, terra, habitação), só serão preservados na prática concreta na medida em que os conselheiros sejam eleitos em assembléias populares periódicas que, além de elegê-los, definem a temática e as demandas ou causas do Conselho, única maneira de garantir a compreensão solidária e compartilhada das lutas e a participação des-individualizada e por isso coletiva (ou politicamente re-subjetivada) dos eventuais conselheiros. Não são eles, nem poderão vir a ser, representantes, são presentantes dos movimentos, por serem, cada um em sua relação com o movimento, o próprio movimento.
Os Conselhos Populares, se consolidados em redes mais amplas, podem significar importante avanço na conquista da dignidade do homem e na construção da cidadania, engendrando assim condições para o advento de uma nova sociedade fundada na reciprocidade igualitária entre os homens.
Na essência, a luta pelos direitos do homem e da mulher é uma luta contra o capital.
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NOTAS
(1) Falcão, Alcino Pinto. Constituição Anotada, Vol. I, José Konfino, 1956, p. 15 “Segundo reputado autor, o Prof. Carl Schmitt, as enunciações do preâmbulo correspondem até às decisões fundamentais, de mais préstimo e valia do que nelas se devem arrimar”.
(2) Agesta, Luis Sanches, O Sistema Político de la Constitución Española de 1978, Editoriales de Derecho Reunidas, 5ª ed., p. 88: “El Estado de Derecho tiene definido su contenido em la constitución española em el artículo décimo..... “es um princípio general que informa todo el texto constitucional”.
(3) Anderson, Perry, O Balanço ao Neoliberalismo, Pós-neoliberalismo, Paz e Terra, 3ª ed., p. 9.
(4) idem.
(5) Esteves, Carlos, Derechos Humanos, Globalización y Desarrollo in Derechos Humanos Democracia y desarrollo em América Latina, Novib, Bogotá, Colômbia, 1993.: Sinalizamos los planteamientos económicos que se aplicam in sociedades como la norte americana o la japonesa, vemos que alli non se implementam lãs recetas del FMI ni el neoliberalismo tal como si viem imponiendo in los países de América Latina. El neoliberalismo resulta una teoria curiosa: “buena para el paciente pero no papa el médico”.
(6) Baldez, Miguel Lanzellotti, A luta pela Terra Urbana, Revista da Procuradoria Geral do Estado do Rio de Janeiro, nº 51, 1968. p. 162.
(7) Canotilho, J. J. Gomes e Moreira, Vital. Fundamentos da Constituição, Coimbra Editora, 1991, p. 102 e 104 respectivamente.
(8) Mesma obra, mesmos autores (p. 99)
(9) Santos, Boaventura de Sousa. O Norte, o Sul e a Utopia in Pela mão de Alice, Cortez Editora, São Paulo, 1995, p. 328.
(10) Martins, José de Souza, O Cativeiro da Terra, Livraria Editora Ciências Humanas, 1979. p. 3.
(11) O AMI seria o quarto instrumento da dominação das multinacionais sobre o planeta. Existem o Banco Mundial (BIRD, que tem por objetivo controlar o desenvolvimento), o Fundo Monetário Internacional (FMI que controla as contas financeiras das nações e impõe a austeridade dos países endividados) e a Organização Mundial do Comércio (OMC, que assegura o livre comércio das mercadorias das multinacionais). O Acordo Multilateral sobre Investimento. Documento do Partido do Trabalho da Bélgica, publicado no Solidaire nº 12, de 18 de março de 1998, in Princípios, nº 52, 1999.
(12) Santos, Boaventura de Sousa, O Discurso e o Poder, Sérgio Fabris, 1998, p. 76.

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